segunda-feira, 14 de junho de 2010

Artigo - Utopia

Imagem: Will Eisnen



Utopia

Uma amiga (Liliane, via Orkut) me havia sugerido escrever sobre o espírito da Copa do Mundo e como isso comove as pessoas e as coloca em espírito mais global, de maior integração e vizualização com o mundo. De fato, distante disso, já havia pensado escrever algo acerca da seleção e a relação do brasileiro com o poder e assim respondi para minha amiga que faria.

Ocorre que no último final de semana nem um sopro de inspiração me havia ocorrido com esse tema. Temia parecer pedante, repetitivo e com pouco embasamento teórico acerca desse tema: poder, seleção e o brasileiro. Porém, algumas várias conversas e episódios se somaram e agora sinto um fio condutor acerca de uma importante reflexão sobre o tema e o universo do cenário ideal da existência, social e política do Brasil.

Pois bem, sábado sentei à mesa com Renato Onofre e sua companheira, Macele, e, no bate papo, conversamos sobre Raimundo Faoro e “Os donos do poder” (livro de grande importância para compreensão da formação do patronato político e econômico do Brasil). Nessa obra, o autor percorre desde a formação do Estado Português até as estruturas sedimentadas na República e no Estado Novo. Da soma dessa leitura com o clássico “Casa Grande e Senzala” (Sérgio Buarque de Holanda), uma idéia se formou em mim acerca da relação de nosso povo com o poder e os poderes constituídos: amor e ódio são elementos essenciais dessa relação!

O servil odeia a seu opressor mas quer, no fim das contas, ser opressor para sair da condição de oprimido, qual não houvesse outro caminho diferente de ser opressor. Na leitura de Raimundo Faoro fica clara a confusão entre o público e o privado, sendo os poderes do Estado confundidos como extensões da senzala (figura da leitura de Sérgio Buarque) e o exercício das funções públicas se confundem com a personalidade do executor, à margem da legalidade.

Na faculdade de Direito, certa vez, provoquei meus colegas acerca da real extensão de nossa capacidade em falar de "corrupção". Será não falamos de um comportamento, um traço cultural tão próprio e arraigado que já não pode mais ser considerado errado?

No Dicionário Michaellis se encontra assim:

cor.rup.ção -

sf (lat corruptione) 1 Ação ou efeito de corromper; decomposição, putrefação. 2 Depravação, desmoralização, devassidão. 3 Sedução. 4 Suborno. Var: corrução. Ora, ao se vangloriar do jeitinho brasileiro, da lei de Gerson em ditados como: farinha pouca meu pirão primeiro; faça o que digo não faça o que faço...não seriam valores instituídos, traços aceitos e assimilados em nosso povo? Que moral é essa contra a qual se atenta? Que devassidão é essa que nos assola? Onde estão nossos guardiões e quem são eles, afinal?!?

Essa continua sendo uma provação que promovo aos meus alunos...

Algumas pesquisas apontam a confusão esquizofrênica que os brasileiros promovem acerca do tema poder e corrupção. Numa delas, realizadas no ano passado (2009) e publicada no Folha de S.Paulo [4/10/2009 - pesquisa do Datafolha feita em todo o país], trouxe alguns números que reforçam esse questionamento: 13% dos brasileiros admitem já ter trocado seu voto por dinheiro, emprego ou presente (17 milhões de brasileiros!); 79% afirmam que os brasileiros vendem voto; 33% dizem que não é possível fazer política sem um pouco de corrupção (como assim "um pouco de corrupção"...alguém já ouviu falar em "meio-corrupto?"); 68% já compraram produtos piratas; 36% pagaram propina alguma vez; e, inacreditavelmente esquizóide é a constatação de que 83% admitem pelo menos uma prática ilegítima enquanto 74% dizem que sempre respeitam as leis, mesmo se perderem chances... como assim?!?

Noutra ponta, o brasileiro reclama da falta de segurança, quer mais polícia na rua mas não confia em suas forças policiais! A mais, em 2007, segundo Datafolha, 55% dos brasileiros eram a favor da pena de morte, porém o nível de crédito aos policiais e ao judiciário não ultrapassava 50% (também em pesquisa Datafolha).

O interessante é perceber que discursarmos uma moral que aparentemente não acreditamos ter, ao mesmo passo que apontamos o erro dos outros e não queremos sejamos flagrados nos nossos! Incrível.

Ainda hoje tive o prazer de conversar com a eterna professora e amiga Beatriz Vieira (por engano ao tentar falar com uma cliente de nome Bia) e bem me lembro de uma de suas aulas, na qual ela tratou do senso de justiça e do ideal de paraíso humano.

Desse último ela apontou para o fato de que sempre que quando a humanidade se destina ao excesso de religiosidade (essa desvinculada à experiência transcendente) é por abdicar da realização do paraíso na terra, abdicar da capacidade de construirmos um mundo solidário, justo e capaz de satisfazer a felicidade tão sonhada, qual no paraíso.

Sobre o senso de justiça, contou fábulas de Nasrudin (sábio sufi que provavelmente habitara a península ibérica durante a ocupação moura). Numa delas, indagado por um juiz se preferia o dinheiro ou a justiça, Nasrudin responde prefere o dinheiro e indignado o juiz lhe passa um sermão acerca da necessidade de justiça, o quanto esta permite a vida em sociedade e Nasrudin, após concordar, lhe sentecia “cada um procura aquilo que lhe falta!”. Noutra, a Nasrudin é pedido que distribua certa quantidade de nozes entre alguns meninos à beira da estrada e a eles pergunta: “na divisão dos homens ou na divisão de Deus?”; e, de pronto, os meninos respondem “na divisão de Deus!”, assim, Nasrudin entrega 1 noz para um dos meninos, 7 para outro, 4 para um terceiro e nenhuma para o último...as crianças, atônitas, indagam: “como assim?”; e Nasrudin pergunta: “Qual divisão pedistes?”; os meninos respondem: “a divisão de Deus!”; Nasrudin então elucida: “pois bem, Deus proporcionou a natureza assim: uns nascem onde têm algum, outros nascem onde tem muito, outros onde tem o suficiente e outros onde não tem nada!”...pois o senso de justiça é uma construção e compreensão humana, entre humanos!

Nessa colcha de retalhos de inspirações para esse texto, ainda hoje conversava com Renata Bandeira de Mello, amiga psicóloga, com quem dividia a percepção de que as pessoas estão pouco apaixonadas pelo Brasil nesta Copa do Mundo e que, definitivamente é necessário descompatibilizar o calendário das eleições com a Copa do Mundo: temos muito o que transformar e discutir sobre nosso país e perdemos muito tempo preocupados com a escalação da seleção (leia-se preocupados como: empurrados goela abaixo pelas pautas jornalísticas). Nessa conversa me esclareceu a necessidade da escrita desse texto com tal reflexão: poder, seleção e o brasileiro.

Em nossa cultura comumente se escuta: religião, política e futebol não se discutem! Sempre que escuto isso me perguto: então discutiremos o quê?

Acredito temos a má educação de desacreditar as discussões, os debates e desdenhar daqueles que os promovem. Nesse sentido, e por essa cultura de aceitação passiva, se conforta o brasileiro de abster-se e participar dos espaços de decisões políticas e sociais (conselhos municipais de educação, saúde, segurança, criança e adolescente, cultura, etc.) como forma de defesa de quem diz: "eu" até faço errado, mas como assim "eu" sou responsável pela zona que aí está? Eu corrupto(or)? "A culpa é deles!" ...eles sempre, eles os outros, eles os alienígenas! No paralelo com a simbologia da seleção: não posso dirigir o time então só me resta torcer quando começar a dar certo, enquanto não der "eu" a nego!

Volto a lembrar a pesquisa acima: 83% admitem pelo menos uma prática ilegítima enquanto 74% dizem que sempre respeitam as leis, mesmo se perderem chances...ou seja...somos esquizóides ou temos um total de 154% de pessoas nesse país?

Daí então chego ao cenário último de conversas com a qual me inspira esse texto, pelo msn converso com Juliana Kunzel e falamos sobre utopias e a importância das mesmas acerca da existência humana. Filóloga que é, Juliana questiona, mesmo indiretamente, o valor dessa palavra e aí novamente encaro o fato de perdermos significados tão importantes pela falta de culto ao nosso linguajar, de culto ao tempo dos significados e construção de valores necessários e reais aqui na terra, entre seres humanos, por meio das discussões e debates, dos exercícios mentais de significados..

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Exemplo: "sacrifício ordinário" parece algo ruim e depreciativo e, no entanto, em sua origem significa o “sacro oficio de todo dia”, aquilo que laboramos a caminho da redenção!

Lembro então da leitura de Barthes em uma aula inaugural (a obra é intitulada “A Aula”) que li enquanto ia a então namorada em Campinas. Nesse livro pequeno (cento e poucas páginas) Barthes discorre acerca do impacto de significâncias que as palavras promovem e, me lembrarei sempre, quando ouvi um Bombeiro que ia para o trabalho dizer que ia para o “serviço” arrepiei! Eita...o valor da palavra, o serviçal, o oprimido travestido de autoridade querendo ser opressor...indignei!

Assim, resumo assim: todos os dias luto pelo desenho de um tempo possível quando estaremos acostumados e nos interessaremos pelas coisas comuns como nossas e importantes a todos; assumiremos nossos espaços de participação cidadã e democrática e nos responsabilizaremos por nossas escolhas, assim como deveremos nos responsabilizar por nossos representantes; um tempo no qual reconheceremos a importância da diferença para a construção do consenso e perseguiremos a Utopia de tempos cada vez melhores e mais harmoniosos, fazendo aqui na terra o paraíso conquistado, o sonho realizado e, cada qual com sua cota de responsabilidade e deleite, serermos torcedores apaixonado de todas as realizações, sem desacreditar o técnico, a seleção ou quem esteja em comando, pois esse, utopia última, será o mais puro reflexo da vontade e comunhão coletiva.

Trabalhador não é servo, é senhor da força de trabalho.

Discussão não é desentendimento, é caminho para o consenso.

Utopia não é quimera, é sonho que se persegue!


Eu prefiro discutir religião, política e futebol...


...alguém?

Um comentário:

  1. Querido amigo, confesso que ao perceber sua "contra partida", a minha visão um tanto "romântica"(risos), a respeito da Copa do mundo, esperava por críticas enérgicas e incisivas. Mas você conseguiu sutilmente expressar-se com propriedade e determinação ao seu ponto de vista. Suas colocações foram muito sensatas, no que tange o posicionamento do indivíduo em prol do coletivo, focando suas prioridades e afirmação de seus reais valores. No entanto, prefiro não deixar de acreditar, que tais momentos, embora sirvam para que esqueçamos, momentaneamente, dos problemas sociais, culturais e econômicos; também são momentos onde buscamos energia, através de uma alegria comum a todos, para continuarmos na luta!

    Um super beijo da sua mais nova leitora e fã,

    Liliane.

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